Desde o começo da crise no Rio Grande do Sul, estrangeiros que vivem em solo gaúcho colaboram como podem com todos, independentemente do país de origem; além do voluntariado, arrecadam e distribuem doações
Era meio da tarde desta sexta-feira (17) e o restaurante Teranga África, do chef senegalês Sidy Gueye, 29 anos, já estava com as panelas fumegando e um cheiro delicioso tomava conta do local, que fica no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre. A refeição, porém, não era para ser vendida aos clientes, em um jantar no estabelecimento aconchegante, mas, sim, para doar para quem não tem.
A missão do dia era enviar alimentos para o projeto SDV Reciclando, do bairro Agronomia, e, também, para o Banco Comunitário Cascata. No total, por dia, são servidas cerca de 500 refeições para quem estiver com fome, seja imigrante ou brasileiro, vítima da catástrofe enfrentada pelo Rio Grande do Sul.
O chef Sidy, no Brasil desde 2012, no dia seguinte ao começo da enchente, colocou o seu avental e começou a preparar comida para ajudar os que mais precisavam. E nem ficar 10 dias sem água e sem luz o impediu de preparar os alimentos — ele e a chef gaúcha Elizângela Farias Alejo, 44, amigos e unidos pela circunstância, fizeram comida à luz de velas e de lanternas. A dupla, que comanda o fogão, ainda conta com o apoio de voluntários, que variam de cinco a 10 diariamente, para ajudar na embalagem e destinação da comida.
— No momento, o restaurante está fechado. Estamos fazendo comida somente para ajudar quem precisa. As pessoas perguntam se o restaurante vai abrir e eu digo que, por enquanto, não. Estamos focados em salvar vidas — diz o chef Sidy. — Fazemos comida com doações que vêm de vários lugares e, quando falta, a gente tira do nosso bolso. Hoje, ela (Elizângela), colocou R$ 200 do bolso dela. Isso tudo para a gente conseguir ajudar quem está precisando.
No primeiro dia, fizemos umas 300 marmitas e nem tinha destino certo. Depois, começamos a nos organizar e encaminhar direitinho. E estamos aí, vamos seguir enquanto conseguirmos doações e o pessoal precisar da gente. Recebemos muitos feedbacks de gente dizendo que não tinha o que comer e, agora, já espera todo dia pela janta — conta Elizângela.
Geraldino "Kanhanga" do Carmo da Silva, 41, presidente da Associação dos Angolanos e Amigos do RS, estava, no meio da tarde desta sexta, seguindo em direção a São Leopoldo. Levava mantimentos e agasalhos para aqueles que perderam tudo nas enchentes. A entidade que lidera está, desde a primeira semana da crise, angariando doações e movimentando o voluntariado, seja para ajudar os seus conterrâneos ou os gaúchos.
Diante desta catástrofe, acho que o que menos interessa é traçar uma régua para olhar por nacionalidade, por cor ou por gênero.
— Estamos ajudando a todos, não somente os angolanos. Nós, os imigrantes, representamos apenas uma parcela da população. Quer dizer, tem muito mais brasileiros precisando de ajuda do que imigrantes. Então, diante desta catástrofe, acho que o que menos interessa é traçar uma régua para olhar por nacionalidade, por cor ou por gênero. Precisamos ajudar todas as pessoas — diz o angolano.
Sem uma sede ainda para a associação, as casas dos membros se tornaram ponto de entrega de doações e, a partir delas, os donativos são levados por Kanhanga e sua equipe para quem precisa, em abrigos ou nas casas das pessoas. Vivendo no Rio Grande do Sul desde 2005, hoje, o imigrante mora em Esteio e, de lá, vai se desdobrando para atender todas as cidades ao redor.
Além da África
Aos 29 anos, Anne Dominique Milceus Bruneau é haitiana e chegou ao Rio Grande do Sul em 2017. Ela vem se dedicando ao trabalho voluntário desde 2018, mas o intensificou em 2020, durante a pandemia. Atualmente, é presidente da Associação dos Haitianos no Brasil (AHB) e, nesta semana, deixou o voluntariado por alguns dias para ir a Brasília participar do Cartagena+40, evento que terá como tema central a inclusão e a integração socioeconômica de migrantes e refugiados.
— Essa situação pela qual o Rio Grande do Sul está passando me faz relembrar de uma tragédia de 2010, que foi o terremoto do Haiti. Como eu fui uma vítima, eu sinto na pele o que o povo gaúcho está passando. É a mesma situação de pessoas que precisam deixar o seu lar e se refugiar em abrigos. Então, eu decidi ajudar porque estou revivendo a mesma situação que eu vivi 14 anos atrás — destaca Anne. — Quero levar a esperança de que tudo vai passar, é uma fase, a gente vai superar.
Como eu fui uma vítima, eu sinto na pele o que o povo gaúcho está passando.
ANNE DOMINIQUE MILCEUS BRUNEAU
Presidente da Associação dos Haitianos no Brasil
Anne, durante o período de enchentes, na maior parte do tempo, é voluntária no Centro Vida, que fica na Avenida Baltazar de Oliveira Garcia, auxiliando os imigrantes e a todos que precisam. E ela não vai sozinha. Além de sua equipe da associação, o seu marido, Andieulot Bruneau, também haitiano, faz o trabalho voluntário entre o abrigo e a rua, levando mantimentos para quem precisa — dentro e fora de Porto Alegre —, arrecadando doações e transportando em seu carro, com combustível pago por ele mesmo.
Nesta sexta-feira, ele, seu filho de quatro anos com Anne, Andjy Bruneau, e os amigos e membros da Associação dos Haitianos no Brasil, Serge Joseph, 37, e Octane Junior Balan, 47, estavam no Centro Vida, seguindo o trabalho de Anne enquanto ela representa os refugiados em Brasília. Desde o segundo dia da enchente eles estão apoiando as pessoas que perderam as suas casas. Nenhum deles teve a residência atingida pelas águas.
— A gente ajuda desde colocar os pallets para colocar o colchão em cima até traduzir o que dizem as pessoas que não falam português. E arrecadamos doações e levamos para quem precisa, do nosso bolso, pagando gasolina e o que for — diz Andielout. — Gostamos de ajudar. É, também, uma forma de retribuir a ajuda que tivemos dos gaúchos desde que chegamos aqui. Fui um estrangeiro que chegou aqui sem nada e, hoje, tenho a minha empresa. Sou pintor.