Fabricio Carvalho/Porto Comunicação / Divulgação Mayla, Nara, Susane, Roseli, Marta, Kauana, Taísa, Tamiris, Débora, Amanda, Vitória e Fabiana. Para pelo menos 12 mulheres a violência doméstica teve o mesmo desfecho em janeiro deste ano: a morte. O Rio Grande do Sul registrou elevação nos feminicídios no primeiro mês de 2024, segundo levantamento realizado por GZH. No mesmo período do ano passado, tinham sido 10 casos, conforme a Secretaria da Segurança Pública do Estado. Ou seja, um registro a cada 74 horas. A média atual é de ao menos um assassinato nesse contexto a cada 62 horas.
— O feminicídio é a ponta do iceberg. Quando estamos vendo o crescimento do feminicídio, podemos ter certeza de que estão crescendo todas as outras formas de violência. O feminicídio nunca é a primeira violência. Sempre é uma sequência, de outras microviolências que vão escalando para a física. Quando uma mulher morre alguma ponta da rede de enfrentamento à violência falhou gravemente. Às vezes, a rede inteira falhou — ressalta a promotora de Justiça, Ivana Battaglin, do Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher.
Um dos casos que despertou atenção em janeiro foi o assassinato da personal trainer Débora Michels Rodrigues da Silva, 30 anos. A mulher teve o corpo abandonado na calçada na frente da casa dos pais dela, em Montenegro, no Vale do Caí, na última sexta-feira (26). O companheiro, de quem Debby estava se separando, confessou o crime e foi preso.
Dois dias depois, no domingo, Amanda Ril Pereira, 18, foi morta com um disparo no rosto, em Quaraí, na Fronteira Oeste. O suspeito é o ex-namorado, que foi preso. Em Bagé, na Campanha, Vitória Ribeiro Gomes, 20, desapareceu na noite de segunda-feira, e foi encontrada morta dois dias depois. A suspeita é de que tenha sido asfixiada pelo ex.
Amanda é uma das quatro vítimas mortas a tiros, enquanto Vitória é uma das três assassinadas supostamente por asfixia – em alguns casos a perícia ainda deve confirmar a causa da morte. Em Sobradinho, no Vale do Rio Pardo, Roseli Aparecida Folmer Lenz, 37 anos, foi uma das três mulheres que tiveram a vida encerrada a golpes de faca em janeiro no Estado.
Susane Menestrino, 59, foi espancada até a morte pelo filho em Rio Grande, no sul do RS. Já Mayla Cardoso, 31, tornou-se a primeira vítima de feminicídio no Estado, após ter sido golpeada com uma chave de fenda no peito, em Porto Alegre. Em Osório, no Litoral Norte, o autor ainda tentou esquartejar Nara Denise dos Santos, 61, após o crime. O corpo da vítima foi encontrado numa geladeira, dentro de casa.
— A violência doméstica e familiar, que é no meu entendimento uma das mais perversas formas de violência, tem uma complexidade no enfrentamento porque esbarra em questões culturais, históricas, enraizadas, que marcam essas relações íntimas entre homens e mulheres, de discriminação e de abuso de poder. A redução do feminicídio está muito atrelada não só à integração das forças de segurança, e à série de estratégias adotadas, mas também a engajar a sociedade civil. Em briga de marido e mulher tem sim que se meter a colher — alerta a diretora da Divisão de Comunicação Social da Polícia Civil, delegada Eliana Parahyba Lopes.
Maior parte no Interior
Em comparação com janeiro do ano passado, o aumento é de pelo menos 20%. Há acréscimo também quando a comparação é realizada com anos anteriores. Em 2022 e 2021, foram registrados 11 casos em janeiro, enquanto em 2020 foram 10 casos. No ano passado, os meses de janeiro e outubro foram os que registraram o maior número de feminicídios no Estado, ambos com 10 casos. Entre os fatores citados pela polícia como propulsores para a incidência desse tipo de crime estão o consumo de álcool e drogas, que costuma ser mais acentuado em algumas épocas do ano.
— É período de férias, em que as pessoas estão mais em casa, bebem mais, e acaba tendo esses desdobramentos. A gente percebe também que o fim de semana acaba tendo maior incidência, também por esses motivos: estar mais perto, mais próximo, em casa, convivendo, e uso de bebida e drogas — explica a delegada Eliana.
Outro ponto que chama atenção é o local onde aconteceram os feminicídios. Dos casos registrados em janeiro, somente um se deu na Capital, sendo os demais em municípios do Interior. Além de Porto Alegre, as cidades que registraram casos foram Bagé, Candelária, Ibirapuitã, Montenegro, Osório, Passo Fundo, Pinhal da Serra, Pinheiro Machado, Quaraí, Rio Grande e Sobradinho. Na visão da promotora Ivana Battaglin, a falta de uma rede articulada em muitas cidades é um dos fatores que desencoraja as mulheres a buscarem ajuda, e faz com que as violências evoluam, até culminar no assassinato da vítima.
— A falta de equipamentos no Interior é mais presente. As cidades pequenas não têm delegacia especializada no atendimento à mulher. A maioria das cidades não tem centro de referência da mulher, e os que existem estão muito focalizados em algumas regiões. Tem um grande branco no Estado, que não tem nada. É um fator que prepondera que ali acabe acontecendo mais violência e, como consequência, também o feminicídio. Quando ocorre é porque em algum ponto a rede falhou ou nem existia rede para salvar essa mulher desse relacionamento — afirma.
Fortalecer vítimas
Num dos casos, registrados em Ibirapuitã, no norte do Estado, o autor já havia sido preso por ameaça contra a vítima e porte ilegal de arma de fogo, mas foi solto três dias depois. A mulher tinha medida protetiva de urgência contra o ex-marido, e acabou morta a tiros. Essa, no entanto, não é a realidade da maioria das vítimas de feminicídio no Estado. A maior parte delas não tinha medida protetiva ou registro anterior contra o agressor.
No ano passado, dos 87 casos de feminicídio registrados, em 88% deles as vítimas não tinham medida protetiva e em 72% não havia registro policial anterior.
— Elas nunca chegaram a uma delegacia de polícia para romper o silêncio. Temos que fortalecer a rede de proteção. Tem que ter um apoio de investimento do município, do Estado. É uma junção de elementos. As informações precisam ser compartilhadas para que a vítima entenda que aquela situação que ela vive é abusiva, é criminosa. Tendo esse conhecimento, inclusive dos direitos que ela faz jus, ela vai conseguir pedir ajuda e ser ajudada. O ciclo da violência é patológico. As mulheres sofrem ao longo de anos, e para romper esse silêncio tem que ter uma estrutura — enfatiza a delegada Eliana.
Algumas iniciativas foram fortalecidas nos últimos anos com esse intuito, como o programa de monitoramento de agressores, com uso de tornozeleiras eletrônicas, implantado em maio, as Patrulhas Maria da Penha, da Brigada Militar, que fiscalizam o cumprimento das medidas, e as Salas das Margaridas, para atendimento das mulheres pela Polícia Civil. Em 2023, o Estado teve redução de 21,6% dos casos de feminicídios.
Procurada sobre o aumento dos registros em janeiro, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Estado informou que não se manifesta sobre dados antes da consolidação oficial dos indicadores mensais de criminalidade.
Ação na praia
O enfrentamento à violência contra a mulher foi um dos temas abordados em mais uma edição do projeto MP na Praia, realizado nesta quinta-feira (1º) em Capão da Canoa, no Litoral Norte. Um ônibus do Ministério Público permaneceu estacionado na Avenida Beira-Mar, onde membros e servidores da instituição puderam esclarecer dúvidas das pessoas sobre seus direitos e distribuir materiais informativos.
— As mulheres morrem por questões culturais. Os homens se sentem proprietários delas. Se não fosse cultural, o inverso também seria verdadeiro. As mulheres também matariam os homens quando se sentissem rejeitadas. E quando a gente ouve um fato desse é raríssimo. Nós temos medo de morrer quando terminamos um relacionamento. Na minha percepção falta uma ação integrada, políticas pública mais eficazes para a gente poder atuar e salvar essas mulheres desde o primeiro grito. A gente não precisa esperar a violência física — diz a promotora Ivana, que participou da ação, representando o Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher.
Raio-x dos casos
A média de idade das vítimas é de 33 anos, sendo a mais nova de 18 anos e a mais velha de 61 anos.
Metade delas, no entanto, tinha menos de 30 anos quando foi assassinada.
Dois terços das vítimas, oito delas, foram mortas dentro de casa.
Dos 12 casos, em 10 o suspeito do crime foi preso e em dois o homem cometeu suicídio.
Quatro vítimas foram mortas a tiros, três por asfixia, três a facadas, uma por espancamento e uma golpeada com uma chave de fenda no peito.
Em sete casos, o autor era o ex-namorado ou ex-marido da vítima. Em quatro casos, o autor foi o marido ou companheiro da vítima. Em um caso, o autor foi o filho.
Em dois casos, além das mulheres os autores assassinaram ou o atual namorado da vítima ou o pai.
Como pedir ajuda
Brigada Militar – 190
Se a violência estiver acontecendo, a vítima ou qualquer outra pessoa deve ligar imediatamente para o 190. O atendimento é 24 horas em todo o Estado.
Polícia Civil
Se a violência já aconteceu, a vítima deverá ir, preferencialmente à Delegacia da Mulher, onde houver, ou a qualquer Delegacia de Polícia para fazer o boletim de ocorrência e solicitar as medidas protetivas.
Em Porto Alegre, a Delegacia da Mulher na Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia, no bairro Azenha. Os telefones são (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências).
As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há DPs especializadas no Estado. Confira a lista neste link.
Delegacia Online
É possível registrar o fato pela Delegacia Online, sem ter que ir até a delegacia, o que também facilita a solicitação de medidas protetivas de urgência.
Central de Atendimento à Mulher 24 Horas – Disque 180
Recebe denúncias ou relatos de violência contra a mulher, reclamações sobre os serviços de rede, orienta sobre direitos e acerca dos locais onde a vítima pode receber atendimento. A denúncia será investigada e a vítima receberá atendimento necessário, inclusive medidas protetivas, se for o caso. A denúncia pode ser anônima. A Central funciona diariamente, 24 horas, e pode ser acionada de qualquer lugar do Brasil.
Defensoria Pública – Disque 0800-644-5556
Para orientação quanto aos seus direitos e deveres, a vítima poderá procurar a Defensoria Pública, na sua cidade ou, se for o caso, consultar advogado(a).
Centros de Referência de Atendimento à Mulher
Espaços de acolhimento/atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamento jurídico à mulher em situação de violência.