13/10/2022 às 10h03min - Atualizada em 13/10/2022 às 10h03min

Após primeiros meses, Novo Ensino Médio no RS divide opiniões de professores, alunos e especialistas

Gaucha ZH
Os primeiros movimentos da implementação do Novo Ensino Médio no Rio Grande do Sul mostram mudanças na rotina em sala de aula das escolas gaúchas. Esse é um processo que segue até 2024, quando os três anos que compõem a última etapa da Educação Básica brasileira devem finalizar a adaptação à reforma. O Novo Ensino Médio dá espaço a disciplinas fora do escopo do ensino tradicional e permite ao estudante a escolha de componentes nas áreas que mais lhe agradam. A possibilidade de personalização da trajetória escolar não existia no currículo antigo. Neste ano, os primeiros passos foram dados: como novidades, os estudantes gaúchos do primeiro ano das escolas públicas têm as disciplinas de Projeto de Vida, Mundo do Trabalho e Cultura e Tecnologias Digitais. No ensino particular, diversas instituições também organizaram novos currículos, com oferta maior de componentes curriculares, em alguns casos. Para entender as primeiras percepções sobre a reforma do Novo Ensino Médio, GZH foi a escolas públicas e particulares, conversou com profissionais que estão à frente da implementação nas instituições de ensino e com quem vem sendo afetado pelas alterações. Enquanto alguns alegam que, apesar das dificuldades para a adaptação inicial, o processo tem sido benéfico, há quem enumere críticas, principalmente à falta de qualificação dos professores para assumir as novas disciplinas. A Secretaria Estadual da Educação (Seduc) alega que, ao longo de 2022, tem conduzido um programa de professores que atuam no Ensino Médio. "Para os componentes Projeto de Vida, Tecnologias Digitais e Mundo do Trabalho, mais de 15 mil docentes estão inscritos nos cursos que são disponibilizados no Portal Educação, que totalizam 140 horas de conteúdo até o momento", afirmou a pasta, em nota. Para os componentes curriculares que compõem as Trilhas de Aprofundamento a serem ofertadas a partir de 2023, os cursos específicos terão início a partir deste mês, conforme a Seduc.
Mudanças em um dos principais colégios de Porto Alegre
Micaely Broglio, professora de Literatura, foi uma das responsáveis por explicar a reforma do Ensino Médio a estudantes e professores do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o Julinho, de Porto Alegre. Ela relata que, nos últimos meses, diversas conversas foram organizadas na instituição para sanar as dúvidas dos cerca de 1,1 mil alunos da escola localizada no bairro Santana.
— Estamos falando de adolescentes que prezam por coisas novas, mas, ao mesmo tempo, se assustam com novidades. Acho interessante a ideia de a escola prepará-los com direcionamento para o mundo acadêmico e profissional, dando a chance de errar e aprender com esses erros antes de se inserirem em cenários reais — comenta a professora.
Micaely diz que o Novo Ensino Médio atenderá as expectativas dos alunos, mas, ainda assim, ressalta que é preciso a elaboração de materiais didáticos "mais completos e instigantes", formações e até minicursos para que os professores se sintam seguros com a nova forma de ensino, para transferirem, assim, essa segurança para os estudantes.
— Por mais que houvesse dificuldade, o andamento do processo trouxe bons resultados e novos aprendizados para todos. A liberdade de escolher as áreas com mais afinidade e interesse para se aprofundar será um grande diferencial para que (os alunos) se mantenham em sala de aula, e já vimos isso com as matérias aplicadas durante este ano — relata a professora.
Luiza Lima Moreira, 16 anos, aluna do Julinho, afirma ter gostado de dois novos componentes: Projeto de Vida e Cultura e Tecnologias Digitais. Para ela, o novo método de ensino é mais atraente e facilitará o processo de tomada de decisão por parte dos estudantes.
— Muitos alunos acabam desistindo da faculdade e do próprio Ensino Médio por não se identificarem com o curso. Agora, conseguiremos focar em áreas a partir das nossas matérias favoritas e passar mais tempo nos dedicando a elas — diz.
A estudante destaca que, nos últimos meses, a escola ofertou oportunidades para esclarecer as mudanças nos componentes, por meio de palestras e apresentações para os estudantes e também em conversas com os professores. Para ela, as novas disciplinas conseguiram dar um "norte" aos estudantes e prepará-los para a continuidade da reforma.
— As novas disciplinas estão sendo como uma porta de entrada para o ano que vem, quando nossa carga horária mudará bastante. Não será tão pesado porque estaremos acostumados com Projeto de Vida, Mundo do Trabalho e Cultura e Tecnologias Digitais. Gostei da iniciativa de ir adicionando essas matérias aos pouquinhos, para entendermos as mudanças — acrescenta.
Qualificação dos professores é obstáculo
Para Geovana Affeldt, diretora da Escola Estadual de Ensino Médio (EEEM) Tuiuti, de Gravataí, na Região Metropolitana, e integrante do Grupo de Estudos de Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a mudança trouxe dificuldades para os profissionais. A grade curricular, sem participação dos estudantes para sua construção, também não foi bem vista pela profissional, assim como o fato de a instituição não ter recebido mais profissionais para as disciplinas do Novo Ensino Médio.
— Pedi professores à Seduc, mas me foi negado. A justificava é não haver educadores com essas formações específicas, que eu deveria encontrá-los no corpo docente da escola, conversar para que eles fossem dispostos a aprender esses novos componentes curriculares — afirma.
Geovana comenta que teve de procurar opções para não deixar os alunos sem as aulas previstas no currículo. No fim, encontrou uma professora que ministrava Projeto de Vida no Ensino Fundamental e outras duas do Ensino Técnico da escola, que tinham formação correlata para assumir Mundo do Trabalho e Cultura e Tecnologias Digitais. Como exemplo, ela cita a situação de um professor de Educação Física que "perdeu" horas na disciplina com a inclusão da nova grade curricular e que, agora, é responsável pelas aulas de Projeto de Vida, assunto para o qual não está qualificado, conforme a diretora. Além disso, Geovana diz que a escola sofre com o déficit de profissionais para as áreas já previstas, como Português, Inglês, Literatura, Geografia e no Ensino Técnico.
— Estamos bastante desapontados com a falta de diálogo para a elaboração das políticas públicas. Não temos voz nem vez. Tínhamos necessidades anteriores a uma mudança curricular, que não foram ouvidas e sofremos com novas demandas que temos de cumprir — comenta.
Procurada, a Seduc informou que foram supridas as vagas dos professores de Economia do Ensino Técnico e da disciplina de Inglês do ensino regular da Tuiuti. Em nota enviada à reportagem na segunda-feira (3), a pasta afirmou que "já foram autorizadas novas contratações emergenciais para suprir as demandas de Língua Portuguesa/Literatura e Geografia. A previsão é de que a situação esteja regularizada em até 15 dias".
Modelo também vale para as escolas particulares
Neste ano, o Colégio Dom Bosco, no bairro Higienópolis, na zona norte de Porto Alegre, incluiu seis matérias novas no Ensino Médio: Projeto de Vida, Projeto e Pesquisa, Língua Espanhola e Cultura Latino-Americana, Empreendedorismo e Práticas Laboratoriais. Segundo o professor  Leonardo Vilanova, as mudanças no modelo demandaram novos posicionamentos de professores e do colégio na adequação ao currículo, processo que causou "desconforto" e "ansiedade" entre os docentes em relação à estruturação das aulas. A instituição da Zona Norte não contratou professores para os novos componentes. Assim, para ministrar as disciplinas, os profissionais do quadro da instituição receberam qualificação.
— Os primeiros meses foram de adaptações. Propomos coisas que não se encaixaram, tivemos de nos adaptar, mudar, mas, no fim, tudo deu tudo certo e os alunos aceitaram bem as propostas. São novas ideias, novas práticas. Viemos de uma estrutura em que os alunos não eram protagonistas. Então, em um primeiro momento, eles ficaram meio perdidos — relata o Vilanova.
O professor das disciplinas de Química e Projeto e Pesquisa do Dom Bosco avalia que não houve resistência nem estranheza por parte dos estudantes com o novo modelo. A dificuldade esteve, sim, relacionada à forma de relação entre aluno e professor, porque, agora, a ideia é que o estudante coloque a "mão na massa" e busque ele próprio pelo conhecimento, tenha iniciativa, avalia Vilanova:
— O Novo Ensino Médio está preocupado com aplicabilidade dos conhecimentos que o aluno adquire na formação básica.  Agora, temos (os professores) um espaço muito maior para trabalhar. Tivemos que reformular tudo, nos desacomodou, foi trabalhoso. O Novo Ensino Médio está preocupado com aplicabilidade dos conhecimentos que o aluno adquire na formação básica. (...) Tivemos que reformular tudo, nos desacomodou, foi trabalhoso."
LEONARDO VILANOVA - Professor das disciplinas de Química e Projeto e Pesquisa do Dom Bosco
Isabela Tubino, 15 anos, é uma das estudantes do primeiro ano do Ensino Médio do Colégio Dom Bosco. Ela é assertiva quando questionada sobre qual das novas disciplinas tem mais lhe agradado: Projeto de Vida. Segundo ela, a abordagem conduzida em sala de aula engloba vida pessoal e acadêmica, duas áreas que precisam estar associadas no ambiente escolar. Nesse contexto, a adolescente diz entender o hábito de conversar sobre si própria e suas expectativas como um momento de acolhimento indispensável para o desenvolvimento individual e na relação com os colegas.
— O autoconhecimento era algo distante da minha realidade. Mas, no Projeto de Vida, entendi que esse processo pode ser iniciado com a idade que estou e que ele faz parte das demais áreas da nossa vida. Sair do colégio já nessa jornada, tendo uma ideia de quem sou, do que gosto, quais são as preferências da minha vida, com certeza vai me ajudar muito lá na frente — comenta.
Isabela relata ter encontros diários com a equipe pedagógica da escola, nos quais esclarece dúvidas em relação aos Itinerários Formativos e recebe sugestões de áreas que podem ser cursadas pela estudante nos dois próximos anos.
— Provavelmente vou seguir algo relacionado à escrita. Meu objetivo é a magistratura. Quero seguir essa profissão por gostar muito e também por acreditar que tenho uma grande facilidade e potencial para isso — comenta.
"Nada indica que a reforma trouxe benefícios", diz especialista
"Mudou o currículo, mas o restante segue o mesmo": esse é o resumo utilizado por Mateus Saraiva, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Observatório do Ensino Médio no Estado, para se referir ao primeiro ano do Novo Ensino Médio nas escolas públicas do RS. No contato com as escolas, Saraiva diz notar boa vontade dos professores para adequação aos novos componentes. No entanto, reforça o entendimento de que os investimentos do poder público não são suficientes para gerar melhorias no ensino gaúcho. Além disso, diz ter recebido relatos de professores que assumiram as novas disciplinas sem a qualificação necessária.
— Não há uma mudança em consonância com aquilo apresentado nas propagandas, que haveria mais liberdade para o estudante, mais diversidade. Em um contexto de precarização, sem concurso (para o magistério) há 10 anos, a reforma será com os professores e a infraestrutura da escola. Não foram feitos gastos para que os jovens possam escolher o que cursar — diz.
Esse quadro, diz o estudioso, causa o "empobrecimento" da proposta do Ensino Médio, que, por consequência, sucumbe devido à estagnação das estruturas da rede estadual. Por isso, no momento, Saraiva observa não haver sinais que indiquem a concretização de melhorias amplas no Estado, capazes de englobar toda a rede de ensino gaúcha.
— Geralmente, eles (o governo estadual) investem em iniciativas pontuais, em escolas centrais, para mostrar que funciona. Esse primeiro ano esteve muito próximo dos anteriores, foi mais preocupante do que realizador de alguma mudança de fato. Nada indica que a reforma trouxe benefícios — avalia.
À reportagem, a Seduc informou que foi autorizada, pelo governo do Estado, a abertura de um novo concurso público para professores da rede estadual. O concurso é destinado para as áreas da Educação Básica, Educação Profissional e Educação Indígena. "Serão disponibilizadas 1,5 mil vagas que serão distribuídas nas 30 Coordenadorias Regionais de Educação (CREs). A previsão de publicação do edital é no início de novembro".
"O Brasil não tem direito de pensar pequeno na educação"
Claudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), afirma que a reforma no Ensino Médio era necessária como um meio de deixar a escola mais atrativa para os estudantes brasileiros. Para demonstrar esse ponto, a especialista usa um levantamento feito pelo Datafolha em todo o país neste ano. Segundo a pesquisa, 98% dos estudantes brasileiros que estão no Ensino Médio nas redes públicas querem uma escola que os prepare para o mercado.  O mesmo estudo indica que apenas 1% afirma que não teria condições de escolher uma área para se aprofundar na última etapa da Educação Básica. A pesquisa foi encomendada pela organização Todos Pela Educação em parceria com a Fundação Telefônica Vivo, o Instituto Natura e o Instituto Sonho Grande. Por isso, para a especialista, o Novo Ensino Médio também será capaz de ajudar a mudar o entendimento sobre a atuação do aluno na escola.
— O Brasil tende a infantilizar o adolescente, supor que ele não é capaz de fazer escolhas, como alguém que precisa ser disciplinado de uma maneira quase militar. A solução para a falta de disciplina não é "robotizar os alunos", mas cada vez mais dotá-los de protagonismo na vida escolar — diz.
Claudia acrescenta que a reforma enfrentou dificuldades nos primeiros meses. Ela cita duas: a implementação do novo modelo em um momento de escolas fechadas e de isolamento social durante a pandemia de covid-19. Outro obstáculo notado é a formação dos professores para atuar no novo currículo: ela afirma que é preciso que os educadores tenham dedicação exclusiva a uma única escola, como uma maneira de conhecer os alunos e se integrar com os outros professores.
Essas adversidades, no entanto, não significam que a alteração no currículo não tivesse de ter sido feita, mas que eventuais adaptações de escolas, alunos e profissionais fazem parte da logística da transformação.
— Somos o 12º país em termos de PIB (Produto Interno Bruto). O Brasil não tem direito de pensar pequeno na educação. Temos de nos desafiar para ter um ensino que realmente prepare os jovens para a vida e para a cidadania.
Como funciona o Novo Ensino Médio
A reforma do Novo Ensino Médio altera o modo de ensino em instituições públicas e particulares. Agora, elas têm mais possibilidades para definir quais disciplinas serão ofertadas aos alunos - por meio dos Itinerários Formativos - o que não era permitido no currículo antigo. Em 2023, a implementação continua: estarão contemplados os primeiros e os segundos anos do Ensino Médio gaúcho. Por fim, em 2024, os terceiros anos serão englobados na reforma.
A composição do currículo tem dois eixos: o primeiro, com a Formação Geral Básica (FGB), que reúne as disciplinas obrigatórias a todos os alunos: Língua Portuguesa, Matemática, Educação Física e Biologia são exemplos. O segundo eixo contempla as mudanças mais significativas, com os Itinerários Formativos (IFs), que são componentes a serem escolhidos pelo aluno, como uma forma de iniciar uma trajetória em uma área de interesse que poderá ser seguida no Ensino Técnico ou Ensino Superior. Os IFs são divididos em componentes obrigatórios: as disciplinas de Projeto de Vida, Mundo do Trabalho, Cultura e Tecnologias Digitais e Iniciação Científica. O aprofundamento curricular ocorrerá com o foco em áreas de conhecimento oferecidas na rede: Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Apesar da liberdade para a elaboração dos currículos dos itinerários, todos devem ser estruturados a partir de quatro eixos estruturantes: Investigação Científica, Mediação e Intervenção Sociocultural, Processos Criativos e Empreendedorismo. Outra mudança já em andamento é a carga horária. Antes, os alunos tinham cinco períodos diários com 45 minutos; agora são seis períodos de 50 minutos nas aulas. O Novo Ensino Médio prevê 3 mil horas nos três anos da etapa. O modelo foi aprovado por uma lei federal em 2017. As maiores alterações serão notadas a partir de 2023, quando os alunos que ingressarem no segundo ano começam a definir, por conta própria, os componentes que querem estudar. Para isso, a Secretaria Estadual de Educação conduziu, em setembro, a Pesquisa de Interesse do Ensino Médio Gaúcho, que teve a participação de 73 mil estudantes do primeiro ano do Ensino Médio da rede estadual. No levantamento, os alunos indicaram oito das 24 trilhas de aprofundamento compatíveis com seus interesses. A partir dessa pesquisa, as escolas terão o mapeamento que servirá de base para a definição das trilhas de aprofundamento ofertadas no próximo ano.

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